quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Ururau: uma outra história



Wellington Cordeiro


Meu avô, seu Feliciano da Cruz Almeida, hoje nos altos de seus 84 anos sempre se destacou por ser grande contador de causos. E, mesmo essas histórias sendo fruto de sua imaginação, eu, como neto e seu fã número um, não tava nem aí se era ficção ou realidade. O importante era sentar debaixo da velha figueira centenária que o pai dele, meu bisavô, Seu Miguel plantou, e ouvir suas histórias, viajando com o som de sua voz rouca e marcante, que, às vezes, em momentos tensos, dava muito medo.
Uma de suas várias histórias dá conta de uma pescaria. E foi contada numa tarde de outono, com um ventinho frio e uivante acrescentando mais emoção ao momento de “contação”. E assim, ele começou...
No ano de 1954 enquanto estourava a guerra sangrenta que assustava até quem estava longe, decidi fazer algo que eu muito gostava de fazer, que era pescar. Sempre fui grande pescador, nunca voltei pra casa sem pelo menos 10 kg de peixe. Pode acreditar! Mas, naquela vez eu queria fazer uma pescaria marcante, então parti com toda disposição, coragem e confiança para uma viagem de três dias para o pantanal de Mato Grosso, lá pelas bandas do Rio Negro.
Quando cheguei naquele mundão de águas fiquei imaginando a quantidade de “peixões” que eu iria levar, não sabia como, mas já respirava orgulhoso só em pensar nesse problema de transporte que eu teria. Só em imaginar a cara do pessoal quando eu voltasse... Montei acampamento e nem deixei pra outro dia, na mesma tardinha preparei os equipamentos e segui a trilha que levava à beira do rio. Foram horas e mais horas de espera e apreensão. E, já a noitinha, nada. É meus filhos, nadinha de peixe. No outro dia, nada de novo. No terceiro dia de novo nada. Pensei: que desgraceira é essa, meu Deus? Vim de tão longe, com tanta esperança e confiança, logo eu, um exímio pescador!
Insisti. Rezei pra tudo que é santo, pois não tinha idéia qual era o padroeiro dos pescadores. Até pra Santo Expedito, o das causas impossíveis, eu pedi, apelei. E nada!
Numa noite, já desesperançoso, sentei embaixo de uma baita árvore na margem esquerda do rio, sem vara nem anzol. Fiquei ali tentando entender o que se passava comigo nessa maré de tanto azar. Sem nenhuma resposta ou suposição, adormeci com o som “ninante” das águas descendo o rio e dos pássaros que se refugiavam nas copas das árvores. Foi então que um sonho, ou melhor, um pesadelo invadiu minha mente. Um jacaré gigantesco apareceu e me deu sinal do porquê da falta de peixe no lugar. Ele devia comer até um boi inteiro, pelo tamanho de sua boca. Ainda no sonho/pesadelo ele me viu, e partiu pra cima de mim como se estivesse há uma semana sem comer, num apetite danado. Corri, corri muito, e ele, atrás de mim, não sabia o que fazer. Então lembrei que jacaré não sobe em árvore, e num salto inimaginável, lá estava eu, ao lado dos pássaros na copa de uma grande árvore.
E lá permaneci pelo resto da semana. Só sei que acordei em cima da árvore.
Então, mesmo sem ter certeza se aquilo tudo era sonho ou realidade, só consegui descer depois de me assegurar de que o bicho já tinha ido embora, então desci, apanhei minhas tralhas, embolei a barraca e fugi desesperado. Triste pela pescaria frustrada e feliz por estar saindo ileso daquela aventura alucinada.
Já de volta, quando fui guardar meu material, uma surpresa: ao enfiar meu braço dentro da mochila pra esvaziá-la, senti uma grande dor no meu dedo, e quando puxei o braço, imagina só: um filhotinho de jacaré estava grudado numa mordida no meu dedo. Minha primeira reação foi salvar meu dedo, depois queria matar o desgraçado que tinha feito o estrago na minha mão. Mas, nem sei porque, preservei o bichano e o criei por alguns anos nos fundos do quintal lá de casa. Porém, à medida que ele crescia, comecei a perceber o sumiço de animais no bairro. Dona Carmem se queixou do desaparecimento de sua cachorrinha, Nequinha. Ela foi, talvez, a primeira vítima daquela máquina de comer que o jacarezinho estava se transformando. Pior de tudo é que a criação do bicho me fez sentir um carinho por ele. Quando eu me aproximava ele até balançava a longa calda.
O tempo foi passando e novas queixas foram surgindo; cães, gatos, porcos, galinhas, tudo que era animal de estimação de alguém, simplesmente desaparecia. E o jacaré crescendo e engordando cada vez mais.
A coisa foi tomando proporções desastrosas e numa atitude de desespero matei o bicho. Matei e chorei. O enrolei num manto e o joguei na margem direita do Rio Paraíba, onde o rio faz a curva e onde suas águas lavam as fundações da Igreja de Nossa Senhora da Lapa. Toda tarde, com o coração em pedaços, lá estava eu indo até a igreja numa atitude desesperada e encharcada de remorso. Pedia perdão e proteção para o bichinho. Na saída da igreja eu ficava horas e mais horas sentado à beira do rio. Olhando pra suas águas e imaginando meu bichinho de estimação se banhando nelas.
Numa noite, em casa, outro sonho me atormentou o sono. Nele uma grande tormenta, como se fosse um furacão e destruía tudo que encontrava na frente. E vindo de longe ele chegava até a igreja. Então, no instante que a tempestade se localizou sobre a Lapa, um raio assustador derrubou uma de suas torres, que rolou inteira até afundar nas águas do rio. Com a queda da torre, a tempestade sumiu. Desapareceu com a mesma velocidade que chegou.
Na tarde seguinte, como em todos os dias, lá fui eu fazer minha visita à igreja. Enquanto me aproximava, percebi um tumulto no lugar. A rua estava fechada por uma faixa, haviam pessoas aglomeradas e, depois de um tempo, percebi perplexo o que havia acontecido. Aquela violenta tempestade, enquanto eu dormia realmente aconteceu. A torre da igreja estava no fundo do rio. Nessa noite permaneci às margens dele. E, nessa mesma noite, tive uma visão, mas dessa vez acordado, eu acho. O meu jacaré apareceu e tinha compreensão pelo o que eu havia feito com ele, até me perdoou. Ao mesmo tempo me agradeceu, porque depois de muitos pedidos de proteção feitos por ele dentro da igreja, agora ele tinha um túmulo, vindo da própria igreja, para eternamente descansar em proteção divina”.

Um comentário:

Simone Pedro disse...
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